O paciente começou com o hábito de assistir a vídeos de gatos na internet. Logo, dançava, com o fone nos ouvidos e os ombros imóveis, entre videoclipes no YouTube. O caminho foi curto para o Pornhub. Piorou com o nascente impulso de olhar tudo que amigos postavam no Facebook. Ele não se contentava com a Timeline comum. Tinha de percorrer todas as publicações, no canto superior direito da rede social, onde se vê cada passo das pessoas: o que curtem, o que compartilham, a quem respondem ou mesmo se estão interessadas em comparecer a um pré-bloco de Carnaval on-line — limito-me a dizer que não tenho ciência do que se trata tal evento.
— Cheguei a confirmar presença numa manifestação pela continuidade do churrasco na laje. Também curti o post de um amigo que escreveu “Só agora resolveram falar de David Bowie”. Compartilhei até um de um conhecido on-line que afirmou “Será que só eu tenho nojo de brigadeiro?”. E mantenho um perfil no MySpace. Tenho vergonha.
Quando deitou no divã, a situação havia progredido. Estava impossibilitado de direcionar a palavra ao interlocutor. Ao menos não sem uma microtela à frente. Com o aprofundamento da situação clínica, o paciente desenvolveu o hábito de percorrer posts no Facebook ou assistir a um protesto de artistas num vídeo de quinze segundos no Instagram, ao mesmo tempo que denunciava em palavras o próprio vício:
— Não consigo parar de rolar a barra para baixo.
Ele me apresentou ao Tor, um navegador clandestino de internet, na quinta sessão. Seu vício se estendia até ao que não gostava. Ganhou o costume de adquirir produtos ilegais, normalmente relacionados a drogas, no Silk Road. É notável que ele jamais tenha usufruído do que comprava nem tivesse vontade de usar drogas. Muitas vezes, recusava-se a abrir o pacote de entrega.
Poucas sessões depois o paciente já se dividia entre o Facebook, páginas pornô — deixava os vídeos em “play” mesmo quando não visava à autossatisfação; afirmava que era apenas pelo “prazer em ver a tela em movimento” — e canais diversos, e adversos, do navegador Tor. Por indicação de um amigo — contatado por um chat sobre vídeos de gatos —, tinha interesse crescente numa página especializada em imagens de acidentes de carros. Também demonstrava gosto por outra na qual um grupo de garotos filmava casas mal-assombradas. Contudo, evitava o que denominava de “bizarrices extremas”, a exemplo dos sites que contratavam pessoas para serem perfuradas com objetos pontudos de várias sortes, por livre vontade.
Na oitava sessão, contou que tinha reparado no sumiço de seu gato. Um real, não virtual. Parece que havia desaparecido fazia um tempo. O paciente, entretanto, declarava não lhe sobrar tempo para procurá-lo pelo condomínio de prédios onde morava.
Na décima segunda sessão, enquanto passeava por fotos de mulheres no aplicativo Tinder — tinha o hábito de também olhar retratos de homens, apesar de não se interessar sexualmente por eles —, lembrou-se de que havia tempo não conversava com a mãe por WhatsApp. Também relatou ter perdido a conta de dias que não marcava um encontro com um, aqui transcrito da forma narrada, “representante do sexo oposto”.
Na décima terceira sessão, disse ter descoberto que uma prima havia falecido 48 dias antes. Não sabia relatar se alguém o avisara da morte. Pesquisou em seu Gmail. Não achou e-mails relacionados ao assunto.
Na décima quinta, compartilhou que havia semanas faltava disposição para o trabalho. Fazia meses que adotara o home office. Agora, porém, nem matinha a produção em casa, conectado a dois smartphones, um tablet, um MacBook Air, um PC, uma Smart TV, um Apple Watch, um Google Glass, duas pulseiras de exercícios e três videogames.
Na décima sétima, soube que ele havia se divorciado. Isso alguns anos antes. Tínhamos nos esquecido de conversar sobre a questão, concluímos. O paciente falava pouco, por ter de revezar o olhar com um número crescente de dispositivos móveis.
Na vigésima, disse ter acabado o dinheiro que recebera pela rescisão de seu último contrato de trabalho. Tivemos de encerrar as consultas.
Voltei a saber do paciente num fórum sobre fãs de simuladores de aviação. Ele me reconheceu pela foto do perfil. Falamos “oi”. Ele não curtia simuladores de aviação.
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Filipe Vilicic é autor de O clique de 1 bilhão de dólares e colunista no site da Veja. Twitter: @FilipeVilicic / Facebook: fvilicic
Às vezes pergunto o que estou fazendo? Sim, entre o smartphone e o computar, e sim novamente o smartphone agora disputando com a TV. Claro, nossa geração é assim; assistimos e ao mesmo tempo precisamos comentar os fatos que se passam diante de nós nas redes sociais. Twitter, Facebook… E por que não tirar uma foto em frente a TV, guardando aquele momento em uma foto, esse que poderá ser eternizado para todo o sempre no Instagram? E assim se resume o dia dos homens que vivem o século XXI. E em todas essas recorrentes inovações tecnológica e transição do ser “social” (que socializa presencialmente com os demais), surgi o “social 2.0?”, o social virtual ( claro se esse termos já não for ultrapassado). E assim cada vez mais fica difícil pensar, criar. Outro dia um médico em um programa de TV disse: “é preciso que tenhamos um tempo, um período em ócio, para que possamos criar”. Através dessa frase, e fácil entender por que os séculos anteriores teve grande gênios, afinal, eles não tinham tantas distrações, preocupavam-se apenas em descobrir o novo, criar e ou reinventar.
Era o que eu precisava mesmo. Obrigado.