Por Felipe Castilho*
Acho que quando somos muito pequenos, as imagens nos marcam com mais facilidade. Como se fôssemos folhas de papel vegetal, transparentes, e os acontecimentos fossem canetas de tinta forte, daquelas que vazam para o outro lado do papel.
Comigo não foi diferente. Queda do Muro de Berlim. Gente chorando ao ver sua conta poupança esvaziada. Um extraterrestre fazendo uma bicicleta voar. Ayrton Senna, num Fórmula 1 azul (tão errado), se acidentando e não voltando para nenhuma outra corrida. Freddie Mercury cantando com Montserrat Caballé e pouco depois não cantando mais nada. Uma enxurrada de documentários e reportagens sobre a corrida do ouro em Serra Pelada…
Aquelas imagens. Serra Pelada me aterrorizava! Mesmo para uma criança que pouco sabia da vida (não que eu saiba muita coisa agora), aquelas imagens causavam aflição e certo sentimento de “isso não deveria estar acontecendo hoje em dia”. A cor opaca que todos adquiriam ao carregar sacos na cabeça. Pessoas sujas de lama, dez delas onde deveria caber só uma, espremendo-se em desfiladeiros, carregando fardos…
Serra Pelada me marcou de tal maneira que algo chacoalhou dentro de minha cabeça e minha noção de mundo se tornou mais… ampla. Eu tinha conforto, mesmo nos dias ruins. Já aquelas pessoas… bem, conforto era algo inexistente para elas. Miséria era o estado padrão.
Isso porque meu medo era quase totalmente visual e minhas comparações, pueris; eu ainda não sabia sobre a prostituição na região, sobre a violência e sobre o que permitira surgir aquele inferno a céu aberto. Sebastião Salgado tem aquele célebre livro (que, ironicamente, repousa na mesa de centro de algumas pessoas muito ricas) em que as fotos em preto e branco quase correspondem à realidade monocromática dos homens que chafurdavam na lama, peneirando seus sonhos.
Tenso.
Mas o tempo, felizmente, passa. São Paulo, décadas depois de Serra Pelada ter sido fechada: ali estava eu, entrando num projeto gigantesco de um universo completamente original, nascido dentro da Comic Con Experience. A Ordem Vermelha viria ao mundo no formato de um livro, e caberia a mim escrever a história. Fiz as primeiras reuniões com a equipe criativa (no dia, estavam presentes Érico Borgo, Renan Pizii, Daniel Lameira, Rodrigo Bastos Didier e Victor Hugo Sousa; estes dois últimos são cocriadores desse universo, comigo) e voltei para casa pensando em fazer um conto ou uma amostra do que eu pensava que seria a linguagem do livro. Já tinha como norte a punch line de eu seria “Cidade de Deus em Westeros”, então os primeiros esboços já conteriam elementos de Alta Fantasia em um cenário facilmente identificável por qualquer brasileiro. Um lugar desigual, claustrofóbico e perigoso.
Hoje, do jeito que está nas livrarias, Ordem Vermelha: Filhos da Degradação é a história de Aelian, um falcoeiro, e Raazi, uma guerreira que, junto com a esposa, descobre um segredo de Una (a deusa de mil anos que governa a cidade de Untherak) capaz de acabar com o governo opressor e com a escravidão. É a história de um povo dominado e reduzido a servos, um povo que jamais deve questionar Una, nem seu braço direito (o general Proghon), nem o “clero” (conhecido como Centípede e formado por misteriosos encapuzados). A história nem sempre foi assim, embora os primeiros rascunhos já contivessem, em essência, esses cenários.
Num dos esboços originais — fui pensando e anotando essas coisas de pé no metrô, assim que saí da reunião no quartel-general do Omelete —, eu já tinha em mente uma mina nos mesmos moldes de Serra Pelada. O local seria explorado por anões e haveria guardas batizados — a galera estaria possuída pela Mácula, uma espécie de piche genético-espiritual que existe no universo do livro — cuidando para que os “trabalhadores” não dispersassem durante o garimpo. Foi aí que surgiu a Tenente Sureyya. Ela ainda não era Tenente de Una e não tinha toda a importância que tem em Filhos da Degradação. Nessa época, eu a imaginava com o poder de metamorfose em vez dos poderes avessos aos kaorshs, e comecei a escrever algo sobre um anão contando que estava ali pensando em como fugir de Untherak através dos túneis, e não procurando metais preciosos. Ele contaria isso para um outro anão, abriria seu coração — e, no final, esse segundo sujeito seria Sureyya transformada, armando uma tocaia. Malditinha desde sua versão beta, a Tenente.
Os túneis secretos foram mantidos; a cidade em que a história se passa, Untherak, é toda cortada por caminhos subterrâneos. O anão infeliz sumiu — ou talvez esteja lá, misturado aos milhares de outros anões que servem a Una e vivem com medo. Talvez já tenha morrido também, não sei. Muita gente morre em Untherak — e alguns têm planos suicidas que envolvem também a morte de uma deusa. Mas algo que esteve na história desde o início foi a noção de formigueiro humano, com pessoas trabalhando à exaustão em nome de um sonho impossível, imaginando que talvez sejam recompensadas caso trabalhem com afinco. Tudo que ouvi sobre o tráfico de entorpecentes em Serra Pelada colaborou para a criação da ideia do carvão fumado pelos servos de Una em cachimbos improvisados.
Acho que não preciso dizer que o descaso com a saúde pública, tanto física quanto mental, também inspirou as zonas de risco dos Assentamentos e a Vila B, onde são confinados os batizados na Mácula. Mas aí o assunto é mais atual e fica para uma próxima. Nós crescemos, nos tornamos folhas mais grossas. Mas a tinta que é derramada sobre nós também se torna mais espessa.
Adorei, excelente texto, lerei o livro pra confirmar uma literatura de alta qualidade! Parabéns!