Ray Bradbury, autor do clássico Fahrenheit 451, afirmava que toda a história da humanidade não era nada além de ficção científica. Se tudo o que sonhamos é ficção e tudo o que fazemos é ciência, não há como contestar a afirmação do escritor. Pensando nisso, se olharmos para o futuro, a ficção científica nos mostra dois caminhos distintos: a utopia e a distopia.
Na primeira, alcançamos a total harmonia entre tecnologia, sustentabilidade e sociedade — todos os problemas sociais se extinguem e o mundo vive sua fase áurea. Mas, na segunda, vivemos constantemente sob forte opressão, desespero e/ou dominação, seja do governo ou de grandes corporações.
O futuro apresentado em Recursão pode ser entendido como o começo de uma possível distopia: quando uma doença misteriosa se espalha por Nova York, pessoas começam a ter lembranças de coisas que nunca aconteceram. Realidade, ficção e imaginação se misturam silenciosamente pela cidade, e uma grande corporação pode estar por trás de tudo isso.
Inspirado no livro de Blake Crouch, Felipe Castilho, autor de A Ordem Vermelha e Serpentário, nos presenteia com um conto inédito, em que a quantidade exorbitante — e atordoante — de informações cria uma sinfonia caótica na mente dos moradores de uma São Paulo distópica.
Leia abaixo o conto completo:
Diga AXIOMA e sorria
Por Felipe Castilho
A multidão estava inquieta, ainda que quieta. Mesmo com todas as bocas fechadas, era possível ouvir seus urros, gritos de guerra e palavras de ordem. Lágrimas doloridas faziam os cantos dos olhos de Milton arderem ainda mais. Ombro a ombro com outros manifestantes, ajeitou o lenço umedecido de vinagre que cobria o rosto, enquanto uma garrafa voava por cima de sua cabeça. Com um ruído extremamente satisfatório, o vidro espatifou-se em um carro abandonado diante da parede de escudos da Polícia Corporativa, e uma flor de fogo o engolfou com pétalas de lótus cintilante. Mesmo diante das labaredas, os fardados permaneceram inertes, aguardando o próximo movimento da turba que protestava.
A avenida havia se tornado um campo de batalha. Na verdade, nos últimos meses, aquele era um campo de batalha que de vez em quando se tornava uma avenida. Em dias de tumulto ou de relativa paz, os carros sempre estavam por lá — mas nem sempre em chamas.
“Quem diria que o combustível fóssil ainda teria uma utilidade para os carros elétricos”, pensou Milton, e ouviu risos à sua volta.
Fazer piadas com o aplicativo de compartilhamento neural era sempre arriscado e, na maioria das vezes, involuntário, pois em geral não havia tempo de formulá-las. Quando se fazia parte de um grupo de MindShare, o normal era ser bombardeado por exclamações desconexas, um fluxo sem fim de opiniões não solicitadas e pensamentos de cunho sexual em momentos inoportunos: as ideias dos outros, despejadas diretamente dentro de seu cérebro.
“É como beber a água oferecida por alguém, mas com esse alguém já despejando-a dentro da sua bexiga.”
Mais risos. Mais granadas de gás lacrimogêneo.
Treinar o cérebro para não formular pensamentos o tempo todo era algo difícil, mas Milton estava melhorando — afinal, a necessidade de fragmentação mental era uma habilidade que o mercado de trabalho exigia (“Você consegue cuidar de quantas tarefas ao mesmo tempo?”), e assim nascia a obrigação de sentir o maior número possível de emoções simultâneas. O tempo todo. O entretenimento era um aquecimento para a única coisa que um humano poderia fazer de bom: produzir. Se algumas pessoas conseguem pensar em três ou quatro coisas ao mesmo tempo, então por que um empregador iria querer alguém que só consegue fazer um mísero trabalho por vez?
Milton costumava fazer traduções técnicas para manuais de acroescavadeiras enquanto lecionava no ensino fundamental. Ocasionalmente, fazia tudo isso editando episódios de mindcast como freelancer. Milton chorava com frequência, independentemente de estar ou não em protestos com gás lacrimogêneo.
Era necessário adaptar-se, uma vez que, com o declínio do petróleo, do lítio, do cobre e do tântalo na Terra, os celulares haviam passado a custar o preço de um jetpack esportivo. E se não havia matéria-prima suficiente nem para a produção massiva de smartphones, androides estavam fora de questão.
“Sem podermos fabricar robôs, nós nos transformamos neles”, pensou alguém no meio da multidão, respondendo ao devaneio de Milton. Sendo ele professor de História, entre muitas outras profissões, aquilo não era novidade alguma. Mas a nuvem de MindShare se encarregou de expô-lo ao chavão, pois era assim que funcionava o pensamento coletivo involuntário. O que você já sabia e o que você não sabia eram inevitavelmente jogados diante de alguém: você mesmo.
Se era incômodo ter o spam ininterrupto dos pensamentos de tanta gente dentro de seu cérebro, pelo menos um grupo de MindShare ajudava bastante a organizar mobilizações: não só esportes coletivos, orgias (o que deu origem ao app MindFuck) e apresentações de dança com coreografias, como também uma manifestação em prol da saúde mental de professores que enfrentam uma tropa de choque armada com bastões elétricos, granadas de efeito moral e escudos de superfície incandescente.
O problema era que o outro lado, munido de bastões elétricos, granadas de efeito moral e escudos de superfície incandescente, também estava conectado em um grupo de MindShare.
Após alguns instantes de mais gritos e ataques ineficazes, a Polícia Corporativa da Capital enviou uma mensagem ao grupo de MindShare diante de seus escudos. A solicitação ecoou no cérebro dos manifestantes:
[PCC – Pelotão 71] está pedindo autorização para conectar-se ao grupo [#MarchaDia30]
Diga LONTRA para aceitar a conexão
Diga ALMOFADA para rejeitar a conexão
“E aí?”, pensou Milton, e recebeu uma avalanche de negativas em resposta. Mais da metade do grupo precisaria dizer em voz alta a senha gerada aleatoriamente para que a conexão fosse feita; mas os professores não recuariam agora. Era necessário lutar por condições dignas de trabalho e por leis que não permitissem que a classe trabalhadora docente realizasse tantas atividades ao mesmo tempo. Cuidar de um grupo de MindShare cheio de adolescentes com todos os tipos de pensamentos fervilhantes era algo que, por si só, podia causar um aneurisma.
Centenas de vozes gritaram ALMOFADA em uníssono, e a conexão com a Polícia Corporativa foi recusada. A palavra, soando pela avenida sem contexto algum, causou mais risos, inclusive entre as fileiras de policiais, desconcentradas por um instante.
Mas então retomaram a atenção com mais granadas de gás.
Milton chutou uma das latas de volta, sentindo a ardência retesando os músculos de seu rosto novamente. Ouviu os gritos dos colegas de profissão e passou seu lenço umedecido para os amigos que reclamavam pelo MindShare, ainda de olho na movimentação da Polícia, que avançava com passadas sincronizadas.
Nesse momento, outra solicitação apareceu nos pensamentos de Milton:
[Ana T.] está pedindo autorização para conectar-se a [VOCÊ]
Diga AXIOMA para aceitar a conexão
Diga BOLO para rejeitar a conexão
— AXIOMA — disse Milton, sem pensar.
E, no mesmo instante, o pensamento de sua esposa espremeu-se entre o seu instinto de sobrevivência e os protestos dos outros professores.
“Adivinha?”, falou ela, tentando fazer suspense, mas a emoção transbordava em sua mente.
Guardar segredos era difícil quando se compartilhava pensamentos. Na situação mais bipolar possível, Milton abriu um sorriso enquanto a Polícia resolvia avançar para rechaçar os manifestantes de vez. Pela atitude, parecia que a PCC estava em um link neural com o Governador-Gestor, acostumado a ações de repressão violentas.
“Ela falou algo?”, enviou ele, enquanto a superfície de um escudo queimava as palmas de suas mãos mesmo através das grossas luvas de couro.
Milton aparou um golpe de bastão elétrico e chutou as juntas do policial. Aquilo sempre funcionava, mesmo em pessoas de armadura.
“Sim! Ela disse au au! Milton, sua filha apontou para a Belinha e disse au au!”
Ele continuou sorrindo em meio ao caos. Estava fazendo duas coisas completamente opostas: protestava e celebrava a vida de uma criança que merecia um mundo melhor que aquele. A sua volta, estampidos, gritos de dor e o som inconfundível e secular de pessoas que exigiam direitos tendo os ossos quebrados. Seus lábios tremeram de alegria e de nervoso enquanto seus links neurais despejavam em sua mente palavras de ordem e as primeiras palavras de uma bebê.
Mais granadas de gás. Mais lágrimas escorreram pelo rosto de Milton. Ele não sabia distinguir quais eram as que ardiam e quais eram as que lhe davam esperança de lutar.
Morro de medo dessas distopia que de repente parecem demais com a nossa realidade.
Adoro distopia e amei essa! Li cada palavra empolgada e ao mesmo tempo pensando em nossa realidade. Parabéns ao autor e à editora.