Por Andréa Pachá*
Depois de duas grandes guerras, e para impedir que o horror se reinstalasse no mundo, a ONU, reunida em Assembleia, proclamou a Declaração Universal de Direitos Humanos, conclamando as nações a promoverem o respeito à humanidade e às liberdades, um compromisso de todos para um espaço coletivo mais digno e justo.
Como em tão pouco tempo nos distanciamos tanto do significado do “humano” e banalizamos a importância da liberdade? Como aceitamos campanhas de sucateamento de princípios protetores da dignidade? Como assistimos a aplausos à violência estatal, à crueldade e à humilhação? Em que esquina deixamos de nos comover com as mortes das vítimas de Covid-19, com a violência contra mulheres, jovens e crianças negras, que se transformam em estatísticas? Como aceitamos, sem questionar, que a condição racial ou social defina quem são os suspeitos de sempre?
Linchamentos, condenações sumárias, discursos de ódio e crueldade têm sido naturalizados, como se fossem paliativos ao medo e à insegurança. “Onde há fumaça há fogo”, “quem não deve não teme”, “bandido bom é bandido morto” são mentiras que, quando repetidas insistentemente, se transformam em verdades. A violação dos direitos humanos, acolhida pela sociedade, e legitimada por autoridades, não só desumaniza, como esgarça a proteção para a vida em grupo. Consequentemente, sucumbimos ao arbítrio e não há democracia.
O mundo mudou. O que conhecemos e experimentamos do passado, parece não dar conta dos questionamentos que temos, dos conflitos que encaramos e das angústias que sentimos no presente. O peso universal dos problemas tem nos causado perplexidade e assombro. O turbilhão que nos invade deve ser enfrentado racionalmente, para que a indignação não nos paralise, e para que não percamos os importantes direitos conquistados nas últimas décadas, especialmente os direitos fundamentais, que redimensionaram a importância das relações interpessoais e familiares, que ampliaram o respeito àqueles que historicamente padeciam de pouca voz e nenhuma oportunidade.
É importante, antes de mais nada, desconstruir a fantasia de que em algum momento da vida ou da história, já vivemos um modelo único de perfeição, especialmente no Brasil. Para além das guerras e dos conflitos que assombram o mundo, trazemos no nosso DNA de brasileiros, uma estrutura social profundamente desigual e perversa.
Racismo, machismo e patriarcado nos estruturam e nos definem. Não tem sido uma luta fácil superar esses fantasmas, em grande parte porque negamos o preconceito. O cenário aparentemente pacífico, de um passado recente, nada mais era do que submissão e invisibilidade de grupos vulneráveis ignorados e silenciados.
Não éramos mais democráticos, mais éticos e mais equânimes naqueles tempos. Éramos mais silenciosos. E no silêncio, o maior sofrimento era impingido aos mais vulneráveis, cuja existência era até mesmo negada. Pessoas com deficiência, crianças, idosos, mulheres, população indígena, negros, eram desconsiderados nas suas diferenças, necessidades e subjetividades. As regras e crenças estabelecidas pelo poder, ao negar as vulnerabilidades, negava a proteção e a positivação de direitos. Máscaras convenientes, que felizmente foram sepultadas com a promulgação da Constituição de 1988, ao menos formalmente.
Apenas nos ambientes democráticos é possível fortalecer os direitos fundamentais, garantidores de igualdade e liberdade. A dignidade da pessoa humana, a promoção do bem-estar de todos, sem preconceitos ou discriminações, a igualdade de gêneros, a liberdade de expressão e pensamento, o reconhecimento do afeto como elemento estrutural das relações familiares foram alguns princípios e valores que transformaram a sociedade e que se fortaleceram no terreno fértil da democracia.
A construção dos direitos fundamentais e da rede de proteção aos vulneráveis, no entanto, é uma construção frágil e recente. Nunca foi tão urgente zelar pelos controles democráticos, especialmente quando todos os embates são travados nas linguagens rasas das redes sociais, que substituem a justiça pelo escárnio.
Democracia não é um projeto concluído ou estabilizado.
Os direitos e garantias alcançados em tempos de liberdade, resultados de lutas e da resistência das minorias vulneráveis, têm sido menosprezados por correntes retrógradas, moralistas, conservadoras e até fundamentalistas. A indiferença e o cinismo generalizado que contaminam as instituições podem comprometer os avanços conquistados, quadro que se agrava quando, no lugar de políticas públicas afirmativas que resgataram a autoestima dos grupos vulneráveis, se desqualificam direitos, e se desconstroem as mesmas políticas duramente edificadas, pela extinção de conselhos, pela burocratização das demandas, pelo silenciamento de vozes, especialmente no ambiente das artes e da cultura.
Há 47 anos, morria o jornalista Vladimir Herzog, um defensor da democracia, do fim da censura e da liberdade. Torturado e violado mesmo depois da morte, com a tentativa de se forjar um suicídio inexistente, sua memória representa um marco na luta pela redemocratização do Brasil.
Celebrar a democracia, quase meio século depois, é celebrar a verdade, a memória e a história, atributos ainda mais relevantes diante do ambiente irascível e binário no qual estamos mergulhados, potencializado pelo uso predatório da linguagem, que tem levado a paradoxos inexistentes.
Defender a democracia é defender a prevalência dos direitos humanos para o bem da humanidade. Não significa proteger o crime e a impunidade. Ao contrário, quando nos afastamos de princípios estruturantes da civilização, é que somos tragados para o pântano da barbárie.
Não é ingênuo defender de forma radical a presunção da inocência, o direito ao contraditório, a dignidade, a liberdade e o desejo de paz. Ingênuo é acreditar que, apostando nas exceções, se preservará alguma garantia. Nas democracias, princípios valem para todos. E só não cabe na democracia aqueles que querem se apropriar dela para enganar, mentir, impor a violência, o arbítrio e silenciar os que defendem as liberdades e os direitos.
Não temos conseguido responder à intolerância, senão com a linguagem da própria intolerância e insistir nessa estratégia é um atalho para o fim das liberdades, pois só quem ganha com a intolerância são os intolerantes. Gandhi já advertiu: olho por olho e todos acabarão cegos.
Somos seres da justiça, da cultura, da educação. Somos permeáveis aos valores humanos e, ao contrário dos fanáticos, conhecemos a linguagem do humor e do afeto. É preciso compreender que liberdade e justiça são produtos de primeira necessidade nas democracias, e que direito humano bom não é direito humano morto.
Rubens Casara, na sua obra “O Estado pós-democrático” narra, por meio de uma fábula oriental, a história de um homem que, enquanto dormia, teve a boca invadida por uma serpente. Alojada no estômago, a serpente passou a controlar todas as suas vontades e ações. Um dia, ao acordar, percebeu que o monstro havia partido e ele estava livre outra vez. Se deu conta, então, de que não sabia o que fazer com a sua liberdade. Perdeu a capacidade de desejar, de pensar e de agir com autonomia.
Reconhecer a importância dos direitos humanos, e da democracia, é tentar destruir a serpente que volta e meia aparece para nos escravizar. É resgatar o conteúdo humano em nossa vida, afirmando, de maneira absoluta, a liberdade e o afeto como antídotos ao autoritarismo e à violência.
Andréa Pachá é juíza, formada em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Antes de ingressar na magistratura, participou de um grupo de dramaturgia e trabalhou com cinema e teatro com nomes como Alcione Araújo, Amir Haddad, Aderbal Freire-Filho e Rubens Correa. Depois de quase vinte anos à frente de uma Vara de Família, Andréa atualmente atua na Vara de Sucessões. Foi membro do Conselho Nacional de Justiça, vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros e coautora da Cartilha da Nova Lei de Adoção e Pela simplificação da linguagem jurídica. Pela sua atuação no CNJ, recebeu em 2010 o Diploma Bertha Lutz. Possui artigos publicados em jornais de circulação nacional e revistas especializadas. Além de Velhos são os outros, Andréa Pachá é autora de Segredo de Justiça e A vida não é justa.
Parabéns! Que texto maravilhoso !